“Elogio à
mentira”?
Padre João
Medeiros Filho
Em 1511, Erasmo de Rotterdam legou à humanidade uma
relevante obra literária de cunho satírico, intitulada “Elogio à Loucura”.
Escrita no estilo clássico dos humanistas do Renascimento, onde o autor tece
críticas à sociedade do seu tempo e, com tom cáustico, comenta os abusos dos
governantes e eclesiásticos. Segundo estudiosos, o livro forneceu, quando
lançado, elementos preciosos aos catalisadores da Reforma Protestante. “Mutatis
mutandis”, talvez falte ao mundo hodierno, inclusive ao Brasil, um estudo semelhante,
em que se analisem os costumes e as ideias que permeiam o debate público.
Possivelmente, seria denominado “Elogio à Mentira”, apesar de um romance
policial de Patrícia Melo e do capítulo de um livro de Lycio de Faria receberem
esse título. Cabe salientar que Cícero Sandroni, na década de 1990, brindou-nos
com “A arte de mentir”, reunindo uma coletânea de crônicas com referências curiosas, críticas
pitorescas, salpicadas de bom humor no estilo leve do jornalista e membro da
Academia Brasileira de Letras.
No século XVI, reinava a
loucura, manifestada nas bizarrices sociopolíticas, éticas, filosóficas e
religiosas. No século XXI, surgiu com mais veemência na sociedade, sentindo-se
à vontade no Brasil, a figura majestática da mentira. Esta é uma senhora
ardilosa, mestra de líderes em diversos segmentos da sociedade. Apresenta
várias faces e inúmeros apostos. Costuma ser chamada por muitos nomes: sofisma,
narrativa e outros mais pejorativos, como embuste, logro, trapaça, engodo etc.
Atualmente, sob as asas da andarilha fake news, ela passeia livremente e com
boa receptividade no solo brasileiro, fantasiada de propaganda e publicidade
eleitoral. Manifesta-se ainda de forma contínua em anúncios, inclusive
institucionais, adrede preparados para o consumo de cidadãos incautos.
A partir das ideias de Erasmo, poder-se-ia imaginar uma
fábula, no estilo de Esopo ou Fedro. O relato seria: Certa feita, apareceu na
eternidade Dona Loucura para visitar Erasmo. Chegando lá, disse-lhe: “Posso
entrar, mestre?” Respondeu o velho filósofo: “Claro. Que surpresa! Como veio
parar aqui? Você não é deste mundo! Deixou a Terra? Como podem os humanos viver
sem você?” A Loucura irrompe: “Ah, mestre, é uma longa história.” Continua o pensador: “Sente-se e conte-me
tudo. Custa-me acreditar que os humanos tenham aceitado a abdicação de uma
soberana tão atraente.” Redarguiu a visitante: “Eu não abdiquei, fui deposta. Expulsaram-me
e têm agora nova rainha.” Retrucou Erasmo: “Você ignorou o meu conselho mais
importante: Se não tem quem a elogie, elogie-se a si mesma.” Incontinenti,
contestou a Loucura: “Mestre, jamais, em momento algum, esqueci. Aconteceu que
fui inconfidente em um dos meus momentos de desvario ou delírio. Minha rival
fez uso de meus conhecimentos.” Indagou, então o sábio neerlandês: “E quem é
essa concorrente tão poderosa?” A Loucura respondeu, desolada: “A Mentira,
mestre. É ela quem governa agora, absoluta. Os homens adoram-na.” A indagação
final do pensador holandês: “E de que lado ficou o dinheiro?” A resposta veio
firme: “O dinheiro casou-se com ela. Ambos povoam o universo, mas gostam muito
do clima brasileiro.”
Há
séculos, a Igreja insiste que a mentira é o sétimo pecado do decálogo
judaico-cristão. As criaturas humanas têm dificuldades em conhecer ou aceitar a
Verdade. Por isso, Cristo se auto definiu: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a
Vida” (Jo 14, 6). Sempre houve dificuldades para entender o que é verdadeiro e
correto. Pilatos chegou a perguntar a Cristo, antes de sentenciá-Lo: “O que é a
Verdade?” (Jo 18, 38). Jesus preferiu permanecer silente, pois cada um tem a
pretensão de ser o seu único dono. Mas, ela é algo objetivo e não subjetivo,
como desejam muitos. Para estes o que importa é a narrativa dos fatos e não a
realidade em si. Um dignitário chegou a afirmar, falando sobre um pretenso
amigo: “Ele precisa construir a sua narrativa para pôr em prática o projeto
político e de poder.” Para o mundo de hoje o importante é o que se diz e não a
realidade, a forma com sua roupagem e não o conteúdo dos fatos. Peçamos como o
salmista: “Dirige-me na tua Verdade, Senhor, pois és o Deus da minha salvação”
(Sl 25/24, 5).
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