quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

“Elogio à mentira”? Padre João Medeiros Filho.

 

“Elogio à mentira”?

Padre João Medeiros Filho

Em 1511, Erasmo de Rotterdam legou à humanidade uma relevante obra literária de cunho satírico, intitulada “Elogio à Loucura”. Escrita no estilo clássico dos humanistas do Renascimento, onde o autor tece críticas à sociedade do seu tempo e, com tom cáustico, comenta os abusos dos governantes e eclesiásticos. Segundo estudiosos, o livro forneceu, quando lançado, elementos preciosos aos catalisadores da Reforma Protestante. “Mutatis mutandis”, talvez falte ao mundo hodierno, inclusive ao Brasil, um estudo semelhante, em que se analisem os costumes e as ideias que permeiam o debate público. Possivelmente, seria denominado “Elogio à Mentira”, apesar de um romance policial de Patrícia Melo e do capítulo de um livro de Lycio de Faria receberem esse título. Cabe salientar que Cícero Sandroni, na década de 1990, brindou-nos com “A arte de mentir”, reunindo uma coletânea de crônicas com referências curiosas, críticas pitorescas, salpicadas de bom humor no estilo leve do jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras.

No século XVI, reinava a loucura, manifestada nas bizarrices sociopolíticas, éticas, filosóficas e religiosas. No século XXI, surgiu com mais veemência na sociedade, sentindo-se à vontade no Brasil, a figura majestática da mentira. Esta é uma senhora ardilosa, mestra de líderes em diversos segmentos da sociedade. Apresenta várias faces e inúmeros apostos. Costuma ser chamada por muitos nomes: sofisma, narrativa e outros mais pejorativos, como embuste, logro, trapaça, engodo etc. Atualmente, sob as asas da andarilha fake news, ela passeia livremente e com boa receptividade no solo brasileiro, fantasiada de propaganda e publicidade eleitoral. Manifesta-se ainda de forma contínua em anúncios, inclusive institucionais, adrede preparados para o consumo de cidadãos incautos.

A partir das ideias de Erasmo, poder-se-ia imaginar uma fábula, no estilo de Esopo ou Fedro. O relato seria: Certa feita, apareceu na eternidade Dona Loucura para visitar Erasmo. Chegando lá, disse-lhe: “Posso entrar, mestre?” Respondeu o velho filósofo: “Claro. Que surpresa! Como veio parar aqui? Você não é deste mundo! Deixou a Terra? Como podem os humanos viver sem você?” A Loucura irrompe: “Ah, mestre, é uma longa história.”  Continua o pensador: “Sente-se e conte-me tudo. Custa-me acreditar que os humanos tenham aceitado a abdicação de uma soberana tão atraente.” Redarguiu a visitante: “Eu não abdiquei, fui deposta. Expulsaram-me e têm agora nova rainha.” Retrucou Erasmo: “Você ignorou o meu conselho mais importante: Se não tem quem a elogie, elogie-se a si mesma.” Incontinenti, contestou a Loucura: “Mestre, jamais, em momento algum, esqueci. Aconteceu que fui inconfidente em um dos meus momentos de desvario ou delírio. Minha rival fez uso de meus conhecimentos.” Indagou, então o sábio neerlandês: “E quem é essa concorrente tão poderosa?” A Loucura respondeu, desolada: “A Mentira, mestre. É ela quem governa agora, absoluta. Os homens adoram-na.” A indagação final do pensador holandês: “E de que lado ficou o dinheiro?” A resposta veio firme: “O dinheiro casou-se com ela. Ambos povoam o universo, mas gostam muito do clima brasileiro.”

Há séculos, a Igreja insiste que a mentira é o sétimo pecado do decálogo judaico-cristão. As criaturas humanas têm dificuldades em conhecer ou aceitar a Verdade. Por isso, Cristo se auto definiu: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Sempre houve dificuldades para entender o que é verdadeiro e correto. Pilatos chegou a perguntar a Cristo, antes de sentenciá-Lo: “O que é a Verdade?” (Jo 18, 38). Jesus preferiu permanecer silente, pois cada um tem a pretensão de ser o seu único dono. Mas, ela é algo objetivo e não subjetivo, como desejam muitos. Para estes o que importa é a narrativa dos fatos e não a realidade em si. Um dignitário chegou a afirmar, falando sobre um pretenso amigo: “Ele precisa construir a sua narrativa para pôr em prática o projeto político e de poder.” Para o mundo de hoje o importante é o que se diz e não a realidade, a forma com sua roupagem e não o conteúdo dos fatos. Peçamos como o salmista: “Dirige-me na tua Verdade, Senhor, pois és o Deus da minha salvação” (Sl 25/24, 5).

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