Padre João Medeiros Filho
A pedido de amigos, volto com mais recordações
da minha passagem pela Bélgica. Com dezenove anos, parco tirocínio e preparação
incipiente, fui levado do status de brocoió de Jucurutu à condição e
responsabilidade de aluno da plurissecular Universidade de Louvain. Isto
aconteceu antes da separação linguística, resultando em duas instituições de
ensino superior: Université Catholique de Louvain-la-Neuve, em Ottignies e Katholieke
Universiteit te Leuven, ambas localizadas a cerca de trinta quilômetros
de Bruxelas. Hoje, em minhas lembranças, “sinto uma coceira no juízo”, na
expressão de Oswaldo Lamartine. “Sua cabeça é uma mistura sem cura”, dizia
mamãe ao bispo de Caicó a meu respeito. Ela, terna e perspicaz, Jácome de
nascença, unida à família Medeiros pelo casamento. Mulher autêntica e sensível.
Não era muito chegada a padres e freiras, mas de um profundo respeito por minha
opção religiosa.
Na Bélgica dos anos
sessenta, vivi uma verdadeira Babel linguístico-cultural-religiosa. Morava no
“Collegium pro América Latina”, onde tive como vizinhos de quarto Michel Quoist
e Camilo Torres, totalmente diferentes pelo temperamento, idioma, formação
teológica, sociopolítica e orientação espiritual. O primeiro, poeta e místico.
O segundo, inquieto, tornando-se posteriormente guerrilheiro colombiano,
marcado pelo sofrimento de seu povo. Para ele, “a dor é a maior fonte de
amadurecimento.”
Leuven (Louvain)
situa-se na província de Brabant, onde se fala flamengo, dialeto neerlandês. Na
universidade, optei pelo regime linguístico francês. À época, por orientação da
Santa Sé, as aulas de Teologia eram ministradas parcialmente em latim. No
seminário, o espanhol era a língua oficial. Eu, o único brasileiro entre noventa
internos, oriundos de trinta e cinco nacionalidades, usava português apenas para
sentir saudades e rezar. Até os meus pecados eram confessados em francês. Não
me responsabilizava pela versão, dizia a Cristo entre sussurros e preces de
arrependimento. Estudei em Caicó e Mossoró com padres holandeses. Aprendi frases
com toques de irreverência nessa língua frísia. Sabia o suficiente para agradar
os flamengos e obter pequenas regalias culinárias. Depois, aprendi o bastante
para contar anedotas e fazer rir o saudoso Padre Pio Hensgens, pároco de Morro
Branco (Natal).
Conheci muitos
latino-americanos, docemente rebeldes e libertários, jovens na faixa dos vinte
anos. Não raro, sofriam de paixões recolhidas pelas loiras, suas colegas
acadêmicas. Penavam com as investidas tentadoras das “galegas”, atraídas pela
tez tropical e os belos “cheveux noirs” dos seminaristas latino-americanos, que
se penitenciavam com orações, jejuns e sacrifícios. Rezavam para transformar o
calor pecaminoso em afeto fraternal. Com um rendimento intelectual alto, acabei
tornando-me ouvinte das dores de amores impossíveis, confidente sem experiência
e poder de absolvição sacramental. Fui apenas um interlocutor compassivo, de
passagem naquela casa de formação clerical, onde se falava pouco e estudava-se
muito.
Fui delineando minha fé num molde singular,
aberta a outros costumes, pensares e saberes. Ela lembra um murano florentino,
um quebra-cabeça que só eu entendo. Foi configurada pacientemente, a partir de
experiências pessoais, meditações, leituras, diálogos e desencantos advindos de
etiologias diversas. Confesso que minha fé cristã é passível de revisões e
adaptações internas. A rigidez é uma das
características dos seres mortos. Num caldeirão de nacionalidades, etnias,
hábitos e visões diversas, fui adquirindo o hábito de ouvir e ver o diferente. O
discípulo de Cristo necessita ser desarmado, disponível e acolhedor. Nesse
aspecto, o Cardeal Cardijn (de quem fui acólito por algum tempo) era meu modelo
de abertura, fazendo estremecer, à época, certos áulicos petrificados do
catolicismo.
Cultivei a amizade
com ateus, agnósticos e fiéis de outros credos. Isso não interferia
absolutamente na qualidade dos diálogos mais profundos. “Deus é diversidade,
pois é Trindade”, dizia o teólogo Nicolau de Cusa. Aprecio gente sensível e
inteligente, caçadora de verdades e atenta à misteriosa e miserável condição
humana. Não estou imune a me deparar com oportunistas, radicais, carreiristas e
intransigentes. Estes se agarram a narrativas e frases feitas, à moda hedonista
ou iconoclasta. Tenho gravadas na memória algumas palavras de Camilo Torres,
dentre elas: “Sou uma simples fagulha de Deus e isso é belo. Gosto de todos e de
tudo, exceto dos arrogantes, pois estes nos afastam de Cristo – ternura e
misericórdia divina.” O apóstolo Paulo recomenda: “Acolhei-vos uns aos outros,
como Cristo vos acolheu” (Rm 15, 7).
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